Em quatro encontros, Ana Karla Farias oferece uma abordagem teórica e reflexiva sobre o uso do ensaio e do processo de criação mais experimental que contribuem para a construção de subjetividades femininas em devir, percebidas nas obras da cineasta ou cinescritora Agnès varda e da literatura mais próxima da imagem de Clarice Lispector. Compreendendo os recursos de subjetivação como estratégia narrativa de ambas as artistas, passando pela abertura à alteridade em obras que partem do si para o fora de si, como a influência das águas profundas e o desmonte da solidez nas narrativas dessas mulheres oceânicas. O curso reflete ainda sobre algumas problemáticas atuais em torno do ensaio no cinema e na literatura e como Varda e Lispector reinventam, cada uma a seu modo, narrativas que escapam de um formato tradicional de cinema e literatura para inscrever suas subjetividades e experiências femininas em suas obras.
Programa:
Aula 1. Gênese do ensaio e tendências estético-formais Gênese filosófico-literária do ensaio a partir de Montaigne; estrutura tripartida do ensaio e as dimensões ensaísticas no cinema de Agnès Varda e literatura mais experimental de Clarice Lispector com ênfase em Água viva.
Aula 2. Cinescrita e recursos de subjetivação como estratégia narrativa nos filmes-ensaios de Varda e os elementos de inscrição subjetiva de Clarice Lispector em Água viva
Conceito de cinescrita e relação com o termo câmera-caneta, cunhado por Astruc; recursos de inscrição subjetiva de Varda em filmes-ensaios como Os catadores e eu, As praias de Agnès e Visages, Villages como presença da realizadora na obra em corpo e voz, voz ensaística; a memória, a utilização de matérias de arquivo particular para compor o filme em As praias de Agnès e o uso de intercessores. O monólogo interior, estranhamentos e epifanias, paratextos e a confecção da obra a partir de fragmentos de seus próprios escritos e o uso de intercessores para dizer de si e do mundo.
Aula 3. Deslocamentos: as águas profundas e o desmonte da solidez em As Praias de Agnès
Segundo A água e os sonhos de Bachelard, o ser conectado à água seria uma espécie de ser em vertigem que se escoa, desfalecendo a cada minuto para
renascer e tornar-se outra coisa. Assim, as águas em Varda e Lispector não refletem uma imagem estável, mas em movimento contínuo. O elemento
aquoso tanto pode representar a liberdade ao restabelecer o autoconhecimento das personagens femininas, como também pode significar a desestabilização da ilusão de proteção.
Aula 4. Lugar de mulher: a inflexão ensaística no cinema e na literatura como instituição de uma subjetividade feminina livre
A casa como lugar de criação e experimentação do pensamento para Varda e Lispector e o ensaio como forma que escapa de formatos convencionais,
possibilitando à mulher experimentar ou criar linguagens que tratem da experiência, dores e potências femininas.
Cine/Bibliografia:
ADORNO, Theodor. O ensaio como forma. In: ADORNO, Theodor. Notas de literatura I. 2. ed. São Paulo: Duas cidades, ed. 34, 2012.
ALMEIDA, Gabriela. O ensaio fílmico ou o cinema à deriva. São Paulo: Alameda, 2018.
ALMEIDA, Rafael. A voz que pensa: vertentes vococêntricas do filme-ensaio. Comunicação e Inovação, p. 125-137, maio-ago. 2019.
AS PRAIAS de Agnès. Direção: Agnès Varda. França: Ciné Tamaris, Paris Films, 2008. Cor, 110 min.
BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos: ensaio sobre a imaginação da matéria. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2018.
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
BENSE, Max. O ensaio e sua prosa. Revista Serrote, n. 16, p. 169-183, 2014.
CIXOUS, Hélène. O riso da medusa. Rio de Janeiro; Bazar do tempo, 2022.
CLÉO de 5 à 7. Direção: Agnès Varda. França, Itália: Ciné Tamaris, Rome-Paris Films, 1962. 90 min.
CURI, Simone Ribeiro da Costa. A escritura nômade em Clarice Lispector. Chapecó: Argos, 2001.
Dantas, Daiany Ferreira. Corpos visíveis: matéria e performance no cinema de mulheres. 2015.
DELEUZE, Guilles. Crítica e clínica. São Paulo: Editora 34, 2019.
DELEUZE, Guilles. Cinema 2. A imagem-tempo. São Paulo: Editora 34, 2018.
HEGENBERG, Ivan. Clarice Lispector e as fronteiras da linguagem: uma leitura interdisciplinar do romance Água viva. São Paulo: Benjamim Editorial, 2018.
HOLANDA, Karla (org.). Mulheres de cinema. Rio de Janeiro: Numa, 2019.
LISPECTOR, Clarice. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 2019.
LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 2020.
TEIXEIRA, Francisco Elinaldo. O ensaio no cinema. Formação de um quarto domínio das imagens na cultura audiovisual contemporânea. São Paulo: Hucitec Editora, 2015.
TIMOTHY, Corrigan. O filme- ensaio: desde Montaigne e depois de Marker. Campinas: Papirus, 2015.
WOOLF, Virginia. Um quarto só seu: três ensaios sobre as grandes escritoras inglesas: Jane Austen, George Eliot, Charlotte e Emily Brontë. Rio de Janeiro: Bazar do tempo, 2020.
YAKHNI, Sarah. Cinensaios de Agnès Varda: o documentário como escrita para além de si. São Paulo: Hucitec/ Fapesp, 2014.
VARDA por Agnès. Direção: Agnès Varda. França: Ciné Tamaris, Paris Films, 2019. Cor, 120 min.